quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Trapézio I- Aurora

Os homens eram a maior paixão da sua vida. E o seu maior embaraço.
Descartara alguns, fora ignorada por outros.
Do maior, porventura o menor, se assumira viúva-solteira, incapaz de desentranhá-lo de si. Ainda não deixara de se importar que ele a tivesse trocado num assomo de lucidez-deslumbramento por outra e mudado de cidade, de país, mas não de planeta.

Comprara - a crédito, que a vida não fora de poupanças e de pre(o)visões para o futuro - uma casinha perdida no tempo com horta a condizer, longe dos desvarios cosmopolitas de outrora, fizera as malas, pedira licença para trabalhar à distância sob pretextos vários e fugira sem olhar para trás.

Cumprira parte da sua profecia para si mesma. Tinha paz, um refúgio rodeado de árvores que balouçavam ao sabor da estação, legumes e flores para cuidar, uma gata e um cão e amigos à distância de uma mensagem de telemóvel.

Quando vestia o pijama à noite, sonhava com alguém a despi-lo, recordando mentalmente todos quantos a haviam tocado e permanecido na memória.
Havia perdido a cabeça e um bocadinho do resto por alguns deles, demasiados até, na inesgotável procura daquilo que nunca poderia oferecer: certezas e infalibilidade.
Entregara-se por inteiro a homens incapazes de reconhecer a dádiva e o despojamento e sentira o sabor pálido da desilusão.

Renunciara a tudo quanto lhe pudesse tolher a alma sem vontade.
Sentia-se feliz com o padeiro que lhe vendia o pão, com a dona da frutaria com quem trocava receitas de petiscos, com os transeuntes que faziam férias onde ela decidira procurar viver, com a música que a fazia rodopiar e com os filmes e os livros que a faziam chorar.

Esperava, no entanto.
Um motivo para voltar a fugir.
Uma razão para recomeçar.
Um amor a quem se pudesse confiar.

Esperava...

domingo, 11 de setembro de 2011

Coração em puzzle

«How my heart behaves"?
Como se «L' amour est mort, l'amour est vide.», «like a rolling stone», movido pela obscura atracção por «walk on the wild side», menos cuidadoso e mais exposto do que seria suposto.

Quase sempre se converte em «pagan poetry» pungente, descontrolada e dolorosa. Um grito no vazio, uma sombra na escuridão. Uma nortada sempre pronta a soprar, um sol intermitente.

«It takes an ocean not to break», bem sei.
E dói sentir «that the world's gone and left you behind», encontrar-me parte, mas não todo.

«I've looked at life from both sides now», o que não me impede de o deixar fugir - ai coração vagabundo -, qual cavalo à solta, temerário, expectante, ávido de ser arrastado num turbilhão de emoções incontidas, renascidas, reinventadas.

«I could live a little better with the myths and the lies». Ou não...






Fontes:

Feist
Jacques Brel
Bob Dylan
Lou Reed and the Velvet Underground
Bjork
The National
Sting
Joni Mitchell
Joy Division

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Santo António Além-Capelas

Santo António Além-Capelas era o Trás-os-Montes da minha infância. A aldeia onde os meus pais e eu rumávamos em fins-de-semana, festas e procissões.

A viagem de camioneta, precedida das habituais interpelações,

"Comeste bem, menina?
Sim, mamã.
É falta de educação ir com fome a casa de outras pessoas.
Está bem.
Levas a "suela" (casaco de malha)?
Não tenho frio.
Não interessa. Leva-a no braço.",

levava-me a um mundo semi-encantado onde ainda havia estradas de terra batida, meninos a brincar descalços, avós, tios-avós, primos e mais primos do 1.º ao 6.º grau, cavalos e vacas, hábitos e cheiros diferentes; ao tabaco de enrolar, a sabão branco e azul, a tempo fora de tempo.

E havia a deferência e a admiração para com a menina da cidade, pretensamente educada, que articulava palavras com um sotaque mais polido, cuidada e protegida qual delicada flor.
As vontades eram feitas, os desejos satisfeitos e os apetites respeitados.

Recebia-se beijos repenicados, o invariável "Deus te abençoe" e a promessa implícita de tudo ali permanecer intacto e imutável como uma eterna Primavera.
A ingenuidade permitiu, durante algum tempo, julgar poder para sempre ter o colinho privilegiado do avô Francisco, as bolachas da Tia Helena e o humor apurado do Tio António.

As gentes foram mudando, os tempos também, a aldeia aproximou-se da cidade e eu fui-me afastando irremediavelmente das raízes na ânsia de uma errância libertadora.

Hoje sei que ainda tenho um pouco daquela Anita sossegada, mimada e frágil. E aceito-o. Ainda que com um misto de ternura e nostalgia.
Bons velhos tempos...

domingo, 4 de setembro de 2011

Em fuga da lua

Existem pessoas que têm sóis nas vidas delas.

Eu tenho uma lua.

Cheia, redonda e grande.
Opressiva, dominadora, implacável e ameaçadora, a maior parte das vezes.
Incompreensiva e tempestuosa, sempre.
Cúmplice, de vez em quando.

Invejo os sóis daqueles que até julgam não os ter.

Queria um pouco da liberdade, das certezas e da paz que eles parecem trazer.

Ao contrário da lua. Da minha lua.