Santo António Além-Capelas era o Trás-os-Montes da minha infância. A aldeia onde os meus pais e eu rumávamos em fins-de-semana, festas e procissões.
A viagem de camioneta, precedida das habituais interpelações,
"Comeste bem, menina?
Sim, mamã.
É falta de educação ir com fome a casa de outras pessoas.
Está bem.
Levas a "suela" (casaco de malha)?
Não tenho frio.
Não interessa. Leva-a no braço.",
levava-me a um mundo semi-encantado onde ainda havia estradas de terra batida, meninos a brincar descalços, avós, tios-avós, primos e mais primos do 1.º ao 6.º grau, cavalos e vacas, hábitos e cheiros diferentes; ao tabaco de enrolar, a sabão branco e azul, a tempo fora de tempo.
E havia a deferência e a admiração para com a menina da cidade, pretensamente educada, que articulava palavras com um sotaque mais polido, cuidada e protegida qual delicada flor.
As vontades eram feitas, os desejos satisfeitos e os apetites respeitados.
Recebia-se beijos repenicados, o invariável "Deus te abençoe" e a promessa implícita de tudo ali permanecer intacto e imutável como uma eterna Primavera.
A ingenuidade permitiu, durante algum tempo, julgar poder para sempre ter o colinho privilegiado do avô Francisco, as bolachas da Tia Helena e o humor apurado do Tio António.
As gentes foram mudando, os tempos também, a aldeia aproximou-se da cidade e eu fui-me afastando irremediavelmente das raízes na ânsia de uma errância libertadora.
Hoje sei que ainda tenho um pouco daquela Anita sossegada, mimada e frágil. E aceito-o. Ainda que com um misto de ternura e nostalgia.
Bons velhos tempos...
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