sábado, 26 de novembro de 2011

cont....

- Não posso crer. Agora que tinha conseguido sentir alguma afinidade com a nova casa e com o novo trabalho. Até já fui tomar uns copos com alguns colegas.
- E? O que tem isso a ver com a carta que o João te enviou?
- Muito. Pensei que a história tinha acabado e que eu só poderia seguir em frente.
- O que muda a carta?
- Pedro, muda tudo.
- O que tens a perder?
- A paz.
- Diz antes: uma existência seca, morna, rotineira.
- Oh... não digas isso. Fico triste.
- Ema, minha querida, conheço-te há uns 10 anos e penso que querias exactamente isso: um recuo, uma prova de amor, um reposicionamento das peças no tabuleiro.
- Mas... E se voltar exactamente ao ponto onde estou? E ainda por cima com mais algumas nódas negras...
- Ninguém te poderá responder a isso.
- Pois...
- Ema, não lutes contra ti própria. Esse é o combate mais desigual e injusto que poderás travar.
- Amo-o. Segui em frente, porque devia, porque queria aparentar ser mais forte e fria do que sou. Mas não o esqueci. Nunca o esquecerei.
- Ainda tens a casa na montanha?
- Sim, por enquanto. Preciso da renovação interior que ela me permite. Porquê?
- Marca um encontro com ele lá. Faz todo o sentido. Se vão retomar no ponto que deixaram...
- Não sei se quero.
- Não sabes se deves.
- E o que se passará a seguir?
- Viverás. Com ou sem ele.
- Será?
- O sexo era bom?
- Não sejas parvo. -disse Ema, sorrindo.
- Era?
- Era mais do que sexo. Era sentir o mundo parar e a vida interromper-se. Era sentir-me rasgar e ao mesmo tempo colar.
- E ainda tens dúvidas quanto a reencontrá-lo, rapariga?
- Tenho medo da ferida voltar a abrir e de não a conseguir fechar.- suspirou Ema.
- Tu nunca tiveste medo. Sempre foste até onde outros nunca ousaram sonhar, sequer.
- A logística é complicada.
- Quantas mais desculpas vais arranjar?
- Pronto. Vou responder e tentar marcar umas folgas.
- Até que enfim. Olha...
- Sim...
- Não o faças prometer aquilo que não poderá cumprir. Ou tu. Vive o momento. Quem dera uma história de amor como a tua.
- Se persistires em não te querer comprometer e em não te quereres mostrar dificilmente te soltarás o suficiente para viveres um amor, já to disse.
- Sim, já disseste. E essa é uma conversa pesada. E estávamos a falar de ti.
- Okay, okay.
- Ema...
- Diz...
- Vive!

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

cont.

«Ema, meu amor,

A alma pesa-me como chumbo. O Outono transformou-me em Inverno.
Deixei-nos ir por medo e cobardia e sinto ter cometido o erro da minha vida.
Julguei conseguir deixar-te sem te deixar, amar-te e depois esquecer-te. Como com todas as outras mulheres… Ainda que pressentisse tudo ser diferente, recuei como de todas as outras vezes.
Afinal a minha vida não é grande coisa. As críticas, os aplausos e os agradecimentos não a completam nem preenchem os espaços em branco. Tu fazias isso.
Lembras-te de lermos em voz alta Vinicius e de ouvirmos sem parar Bowie: “Love me, love me, love me, say you do, let me fly away with you…”? Como tudo parecia suspenso…
Agora busco em vão o som do nosso riso e o brilho húmido do olhar, os sussurros e a tempestade de emoções.
Apaixonei-me pela mulher que és; imperfeita, com arestas e pungente, inesquecível e arrebatadora. Seres ou não a mulher ideal é completamente irrelevante, sei-o agora.
Dava tudo para voltar atrás e recuperar os momentos de que guardo as memórias.
Irei a tempo?
Muito teu,


                                                                                              João»


domingo, 20 de novembro de 2011

Crepúsculo

- E?- perguntou em uníssono o elenco de uma nova peça que se preparava para estrear.
- Mais do que alguma vez julguei ser possível. Eu tinha razão.
- Quanto a conhecê-la?- perguntou uma das actrizes, recém-descoberta.
- Também, Miriam. Descobri que nos tínhamos cruzado num elevador de hotel anos atrás. Falava, no entanto, do imenso que tinha percebido dela.
A Ema podia ser uma mulher igual a tantas outras e era-o, de certa forma. Para lá disso era o vento e a chuva. O sol na noite mais escura. O silêncio cortante e o abraço sem fim.
Senti-la era sentir-me à beira de um precipício; receoso, despojado, livre e autêntico.
Ao mesmo tempo que me permitia descobri-la, mostrava-me uma nova forma de amar. A verdadeira, a maior…
- Era bonita?- não se impediu o protagonista de perguntar.
- Muito. Lembrava-me o mar; sereno, intranquilo,  irrepetível, impossível de conter.
- O que aconteceu na montanha mudou-te?- perguntou ainda.
- Julgo poder dizer que nos mudou. Aos dois. Consegui sentir-me mais próximo do sentido e do significado que queria imprimir à minha vida. E ela, bem… ela parecia que tinha estado à minha espera.
Permitimo-nos abandonar-nos sem projectar o passo seguinte, saboreando cada instante. Lemos juntos, revimos filmes e descobrimos outros, cantámos fora do tom, dançámos, discutimos pontos de vista e opiniões, acabando, de certa forma, por encontrar o equilíbrio em quase tudo.
- E depois?- insistiu Miriam.
- Nunca houve depois. Como imposição ou obrigatoriedade de continuação, pelo menos. Houve o nosso tempo e o caminho que cada um traçou a seguir.


- Nunca serei a mulher ideal para ti, pois não?
- Porque dizes isso?
- A verdade, por favor.
- Talvez não. Esperas demasiado. De ti e dos outros.
- Somos felizes?
- Hoje, sim. Muito. Mas tenho medo que amanhã te pudesses sentir infeliz, tendo-me.
- Infeliz porquê?
- Porque terias medo das outras mulheres, porque me quererias mais e melhor, porque não te contentarias com os bastidores.
- Sou assim tão egocêntrica?
- És um sol que precisa de muito afecto para poder brilhar.
- Serei?
- Nunca conheci ninguém como tu, Ema. Deixei-me enredar no temporal que trazes. Ensinaste-me a ser verdadeiro, a ir só se quiser, a abrir-me e a deixar entrar. Fizeste-me frágil.
- Como te sentes?
- Em carne viva.
- Não…
- Dói-me saber que partirei amanhã. E que nos deixarei para trás.
- E tem que ser assim, João?
- Não, mas deve.
- Não quero.
- Nem eu. Quero que não nos esqueçamos de que conseguimos ser felizes e completos.

domingo, 13 de novembro de 2011

Entardecer

- Posso fazer-lhe companhia?
- Hã? Ah, sim. Pelo menos até desvendarmos o mistério, respondeu Ema, sentindo-se subitamente confortável naquela espécie de jogo.
- O seu?- perguntou-lhe.
Lá estava o sorriso. Impenetrável e irresistível.
- Não sou misteriosa, por muito que me esforce por ser. Falava do lugar de onde me conhece. Estou inclinada a dizer que será de uma outra vida ou de um sonho.
- Outro chá para si?- esquivou-se ele.
- Um copo de vinho branco seco.
- Acho que vou pedir o mesmo para mim. O fim de tarde adequa-se perfeitamente.
- Perdoe o meu esquecimento. Chamo-me João.
- Ema.
- Perdida neste recanto?
- Pelo contrário. Acho que me encontrei. E o João?
- Talvez procure o que encontrou.
- Aqui?
- Em todo o lado.
- Mas está de passagem, não? -perguntou-lhe, cada vez mais interessada nas possibilidades infinitas daquela conversa.
- Efectivamente. Vim a uma conferência aqui perto e decidi prolongar a ausência por alguns dias.
- A simplicidade e autenticidade irão seduzir-lhe, estou certa.
- E a Ema está por aqui há muito?
- 3 anos. E já estou de partida.
- Encontrou-se, descobriu como alcançar a felicidade e parte, senhora desses ensinamentos?
- A errância e o perpétuo inconformismo impedem-me de parar.
- Inquieta e ávida?
- Muito.
- E o que faz, João?
- Sou encenador.
- Não diga.
- É um mundo fantástico, mas duro.
- Alguma vez representou?
- Todos os dias. Para os outros. Estou a ser sardónico, desculpe. Já entrei em algumas peças de amigos, mas por graça. Interessa-me muito mais dirigir, concretizar a conceptualização que faço de uma qualquer história, ir afinando, moldando, adaptando até a entregar ao público.
- E a Ema?
- Escrevo, sem pretensão de passar por escritora. Escrevinho, por assim dizer.
- Sobre?
- Vou passar a escrever sobre viagens.
- Dá muito de si no que faz?
- Quase tudo. Quase tudo, João. Tenho o privilégio de poder ser eu 24 horas por dia, ainda que algumas vezes isso se possa revelar desgastante.
- Quando se faz desaparecer todos os interruptores, acontece isso. Deixa de haver dias úteis, noites vazias ou momentos compartimentados.
- Verdade, mas sou muito mais feliz assim.
- Eu também. E quando sinto estar a atingir os meus limites, evado-me. Como hoje.
Ema sorriu.
- Ainda procura algo?
- Nunca me sentirei completo ou satisfeito. Às vezes apenas procuro formas diferentes de alcançar o mesmo. Caminhos diferentes para o mesmo destino. Também eu sou inquieto e ávido, daí tê-lo descoberto em si. Mais não foi que ver o meu reflexo no seu espelho.
Gostava da sensação de estar a ser subtilmente observada e lida por aquele homem que como tinha aparecido, desapareceria. Mais, ele encerrava um fascínio indelével, mas indiscutível.
- Estou a começar a sentir fome. Os ares da montanha são um bálsamo para a correria de todos os dias.
- Verdade. Por alguma razão, apaixonei-me por este sítio.
- Apaixona-se muitas vezes?
- Cada vez menos.
- Sugere algum local para jantarmos?
- Jantarmos?
- Sim. Ou já tem planos?
- Não, não tenho. Só temo aborrecê-lo de morte quando o seu objectivo era descontrair.
- Como até agora?
Riram ambos.
Desejosa de prender a fluidez daquele momento e o homem que a provocava, disparou sem pensar:
- A vista da minha casa é uma peça.
- E a Ema é uma tela.
- Em branco?
- Também.
- Dê-me algum avanço. Pode ser?
- Perfeitamente. Quer que leve algo? Vinho?
- Sim, obrigada. Não terá problemas em dar com o sítio. É uma casita isolada no meio do monte com um baloiço pintado de branco com almofadas às cores na entrada.
- Até daqui a 2 horas?
- 1 hora e meia. Até porque estou a contar com as suas deixas na cozinha.
- Espero estar à altura. Há muito que prescindi do prazer de cozinhar para mim e para outros.
- Até logo!

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Manhã

Ema nunca se sentira tão em paz. Consigo e com o mundo.
A vida corria sem sobressaltos.
Ian, o fiel companheiro com quem partilhara as lágrimas e o riso, as rodelas de chouriço e as bolachas de chocolate, partira. Joy, quase como se subitamente lhe faltasse razão para continuar, também.
Sem cão e sem gata, a casa pareceu dolorosamente durante algum tempo mais vazia, mais triste, mais só.
Após essas perdas, a necessidade de se sentir presente e cúmplice levou-a a esboçar sorrisos a estranhos e a tagarelar com os conhecidos. Não substituía o amor e a ternura, mas protelava a sua busca.
Viajou, reviu velhos amigos, ponderou mudar de vida - outra vez - e decidiu que valia a pena não parar, não se deixar ficar para trás, arriscar.

Por isso, não conseguiu deixar de se sentir eufórica quando lhe telefonaram a dizer que precisavam de alguém com o seu perfil para ser correspondente noutra cidade.
Era gratificante, pensou.

Doía-lhe deixar os plátanos que todos os dias via da janela do quarto, a liberdade de trabalhar sem horários e sem viagens, a tranquilidade bucólica que tanto a tinha apaziguado, o sossego e a absoluta independência.

"É o melhor para mim. É agora ou nunca. Alguma agitação nunca fez mal a ninguém", dizia de si para si.

Decidiu que não iria passar os últimos dias naquele refúgio de que guardaria memórias tão doces, infeliz e esquecida do mundo.
Achou que esse seria o período ideal para desabrochar e comunicar com os outros, como se de um estágio para o que viria a seguir se tratasse.
Por isso, passou a dar longos passeios pela floresta na ânsia de guardar todos os cheiros, todos os estalidos e tudo o que via dentro de si. Optou por tomar refeições leves fora de casa e aproveitar os últimos raios de sol a ler em terraços e esplanadas, sem pressas, pelo dia fora.
Era reconhecida, saudada e felicitada pela nova etapa que começaria em breve.
Sentia-se feliz por tudo.

Num fim de tarde como muitos outros, em que a brisa a despenteava e virava as páginas do livro que lia, foi surpreendida por alguém que lhe disse:

- Nunca li algo que me assombrasse tanto como esse livro.
- Assombroso, efectivamente, anuíu Ema.
- Conheço-a. Aliás, só posso conhecer e sentir-me próximo de alguém que lê preciosidades como essa.
Ema sorriu, corando.
- Não faço parte de nenhum clube de leitura, disse, em tom de desafio.
- Vou descobrir depois de pensar um pouco mais sobre o assunto, mas conheço-a. E pronto!
Ema sentiu-se vibrar quando viu o sorriso maroto e de garoto que o desconhecido esboçou. Era lindo, despreocupado, solto e leve. E sincero, pareceu-lhe.

Não se lembrava da última vez que alguém a tivesse cativado.

Muitas vezes sentira falta do desvario, da corrida desenfreada dentro do seu peito, da vontade de querer ser maior do que o mundo, enfim, da paixão.