quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Manhã

Ema nunca se sentira tão em paz. Consigo e com o mundo.
A vida corria sem sobressaltos.
Ian, o fiel companheiro com quem partilhara as lágrimas e o riso, as rodelas de chouriço e as bolachas de chocolate, partira. Joy, quase como se subitamente lhe faltasse razão para continuar, também.
Sem cão e sem gata, a casa pareceu dolorosamente durante algum tempo mais vazia, mais triste, mais só.
Após essas perdas, a necessidade de se sentir presente e cúmplice levou-a a esboçar sorrisos a estranhos e a tagarelar com os conhecidos. Não substituía o amor e a ternura, mas protelava a sua busca.
Viajou, reviu velhos amigos, ponderou mudar de vida - outra vez - e decidiu que valia a pena não parar, não se deixar ficar para trás, arriscar.

Por isso, não conseguiu deixar de se sentir eufórica quando lhe telefonaram a dizer que precisavam de alguém com o seu perfil para ser correspondente noutra cidade.
Era gratificante, pensou.

Doía-lhe deixar os plátanos que todos os dias via da janela do quarto, a liberdade de trabalhar sem horários e sem viagens, a tranquilidade bucólica que tanto a tinha apaziguado, o sossego e a absoluta independência.

"É o melhor para mim. É agora ou nunca. Alguma agitação nunca fez mal a ninguém", dizia de si para si.

Decidiu que não iria passar os últimos dias naquele refúgio de que guardaria memórias tão doces, infeliz e esquecida do mundo.
Achou que esse seria o período ideal para desabrochar e comunicar com os outros, como se de um estágio para o que viria a seguir se tratasse.
Por isso, passou a dar longos passeios pela floresta na ânsia de guardar todos os cheiros, todos os estalidos e tudo o que via dentro de si. Optou por tomar refeições leves fora de casa e aproveitar os últimos raios de sol a ler em terraços e esplanadas, sem pressas, pelo dia fora.
Era reconhecida, saudada e felicitada pela nova etapa que começaria em breve.
Sentia-se feliz por tudo.

Num fim de tarde como muitos outros, em que a brisa a despenteava e virava as páginas do livro que lia, foi surpreendida por alguém que lhe disse:

- Nunca li algo que me assombrasse tanto como esse livro.
- Assombroso, efectivamente, anuíu Ema.
- Conheço-a. Aliás, só posso conhecer e sentir-me próximo de alguém que lê preciosidades como essa.
Ema sorriu, corando.
- Não faço parte de nenhum clube de leitura, disse, em tom de desafio.
- Vou descobrir depois de pensar um pouco mais sobre o assunto, mas conheço-a. E pronto!
Ema sentiu-se vibrar quando viu o sorriso maroto e de garoto que o desconhecido esboçou. Era lindo, despreocupado, solto e leve. E sincero, pareceu-lhe.

Não se lembrava da última vez que alguém a tivesse cativado.

Muitas vezes sentira falta do desvario, da corrida desenfreada dentro do seu peito, da vontade de querer ser maior do que o mundo, enfim, da paixão.