- Posso fazer-lhe companhia?
- Hã? Ah, sim. Pelo menos até desvendarmos o mistério, respondeu Ema, sentindo-se subitamente confortável naquela espécie de jogo.
- O seu?- perguntou-lhe.
Lá estava o sorriso. Impenetrável e irresistível.
- Não sou misteriosa, por muito que me esforce por ser. Falava do lugar de onde me conhece. Estou inclinada a dizer que será de uma outra vida ou de um sonho.
- Outro chá para si?- esquivou-se ele.
- Um copo de vinho branco seco.
- Acho que vou pedir o mesmo para mim. O fim de tarde adequa-se perfeitamente.
- Perdoe o meu esquecimento. Chamo-me João.
- Ema.
- Perdida neste recanto?
- Pelo contrário. Acho que me encontrei. E o João?
- Talvez procure o que encontrou.
- Aqui?
- Em todo o lado.
- Mas está de passagem, não? -perguntou-lhe, cada vez mais interessada nas possibilidades infinitas daquela conversa.
- Efectivamente. Vim a uma conferência aqui perto e decidi prolongar a ausência por alguns dias.
- A simplicidade e autenticidade irão seduzir-lhe, estou certa.
- E a Ema está por aqui há muito?
- 3 anos. E já estou de partida.
- Encontrou-se, descobriu como alcançar a felicidade e parte, senhora desses ensinamentos?
- A errância e o perpétuo inconformismo impedem-me de parar.
- Inquieta e ávida?
- Muito.
- E o que faz, João?
- Sou encenador.
- Não diga.
- É um mundo fantástico, mas duro.
- Alguma vez representou?
- Todos os dias. Para os outros. Estou a ser sardónico, desculpe. Já entrei em algumas peças de amigos, mas por graça. Interessa-me muito mais dirigir, concretizar a conceptualização que faço de uma qualquer história, ir afinando, moldando, adaptando até a entregar ao público.
- E a Ema?
- Escrevo, sem pretensão de passar por escritora. Escrevinho, por assim dizer.
- Sobre?
- Vou passar a escrever sobre viagens.
- Dá muito de si no que faz?
- Quase tudo. Quase tudo, João. Tenho o privilégio de poder ser eu 24 horas por dia, ainda que algumas vezes isso se possa revelar desgastante.
- Quando se faz desaparecer todos os interruptores, acontece isso. Deixa de haver dias úteis, noites vazias ou momentos compartimentados.
- Verdade, mas sou muito mais feliz assim.
- Eu também. E quando sinto estar a atingir os meus limites, evado-me. Como hoje.
Ema sorriu.
- Ainda procura algo?
- Nunca me sentirei completo ou satisfeito. Às vezes apenas procuro formas diferentes de alcançar o mesmo. Caminhos diferentes para o mesmo destino. Também eu sou inquieto e ávido, daí tê-lo descoberto em si. Mais não foi que ver o meu reflexo no seu espelho.
Gostava da sensação de estar a ser subtilmente observada e lida por aquele homem que como tinha aparecido, desapareceria. Mais, ele encerrava um fascínio indelével, mas indiscutível.
- Estou a começar a sentir fome. Os ares da montanha são um bálsamo para a correria de todos os dias.
- Verdade. Por alguma razão, apaixonei-me por este sítio.
- Apaixona-se muitas vezes?
- Cada vez menos.
- Sugere algum local para jantarmos?
- Jantarmos?
- Sim. Ou já tem planos?
- Não, não tenho. Só temo aborrecê-lo de morte quando o seu objectivo era descontrair.
- Como até agora?
Riram ambos.
Desejosa de prender a fluidez daquele momento e o homem que a provocava, disparou sem pensar:
- A vista da minha casa é uma peça.
- E a Ema é uma tela.
- Em branco?
- Também.
- Dê-me algum avanço. Pode ser?
- Perfeitamente. Quer que leve algo? Vinho?
- Sim, obrigada. Não terá problemas em dar com o sítio. É uma casita isolada no meio do monte com um baloiço pintado de branco com almofadas às cores na entrada.
- Até daqui a 2 horas?
- 1 hora e meia. Até porque estou a contar com as suas deixas na cozinha.
- Espero estar à altura. Há muito que prescindi do prazer de cozinhar para mim e para outros.
- Até logo!