O meu pai foi o primeiro grande amor da minha vida.
Lembro-me de aparentar ser impenetrável, forte e intangível, de condenar a hipocrisia, a deslealdade e a menoridade e de ter tiradas irónicas e bem-humoradas imprevisíveis.
Pensava e sentia muito mais do que dizia ou mostrava. As emoções eram uma amálgama de sentimentos intensos e contraditórios, uma corrente contra a corrente, uma nortada que abanava alicerces, ainda que de forma imperceptível e indelével.
A tranquilidade, a implacabilidade e a segurança que demonstrava eram, muitas vezes, escudo de protecção contra a incerteza, a dúvida e a fragilidade que sentia, sei-o agora. Intimamente.
Recordo-me da nossa cumplicidade dentro do mundo de silêncios e de portas fechadas e janelas entreabertas que era o nosso.
No fim (que chegou cedo e depressa demais), a fúria de se libertar da dor, o medo, enfim assumido, do sofrimento, a revolta contra a inevitabilidade da vida - e da morte -, as promessas por cumprir e os desejos por satisfazer ditaram o momento da partida sem que eu lhe pudesse dizer adeus.
Acredito que esse não tenha sido o nosso fim, mas apenas o início de uma outra caminhada reinventada, partilhada, sem contornos ou limites.
Lamento não ter partilhado contigo as alegrias, os sucessos e as dores dos meus dois terços de vida sem ti. Sei que me compreenderias. Fui feita da tua massa, do teu molde e orgulho-me disso. Tanto...
Perdoas-me o percurso acidentado, a insensatez, a rebeldia, as regras reformuladas a cada instante, as vezes que segui em frente quando devia ter parado?
Perdoo-te me teres deixado para trás. A mim. A nós.
Fizeste tudo o que podias. Mais do que podias.
Encontro-te em capítulos da minha história, vejo o teu reflexo no espelho da minha alma, sinto-te perto quando perdida e ainda ecoam nos meus ouvidos o som da tua voz grave e doce.
Tenho saudades tuas, papá.
Vemo-nos por aí?
As poucas que tinha, já não as tenho. Perdi-as ou escondi-as num canto escuro da memória para fugir delas. Ilusão ou crua verdade. A casa voltarei. Em casa, reencontrar-mos-emos.
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